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Quando é que a música termina, afinal?

(post da série O meu jeito de compor – clique para ver a série completa)

Neste último post da série O meu jeito de compor, não posso me furtar a uma reflexão sobre o fim da obra. Nos capítulos anteriores, discuti as origens das ideias musicais, seu planejamento e sua execução através de diferentes suportes. Agora temos que encarar a questão do encerramento de um processo composicional. Afinal, quando é que um compositor pode respirar fundo, encher a boca, e dizer em paz consigo mesmo: “está pronta esta coisa!”?

Em geral, considera-se o trabalho como terminado quando está revisado e entregue. A revisão é um processo inevitável, que começa logo após se chegar a uma primeira versão finalizada da peça. Neste ponto, você certamente precisa da opinião de terceiros, seja de colegas, amigos, familiares, ou de quem tenha encomendado a música. As pessoas sempre terão coisas a dizer sobre música, e seus comentários costumam ser inesperados. Embora nem sempre estejam acostumadas a falar profundamente sobre música, quando incentivadas, as pessoas fazem associações muito interessantes entre sons e o mundo, não importando se têm formação musical ou não. Desta forma, o momento da revisão e da colheita das primeiras críticas seria idealmente um novo momento de reflexão, tal qual aquele que inaugurou o processo todo.

É importante observar que música não é feita com exatidão. Compor a peça certa não funciona como um jogo de tetris, onde você precisa encaixar peças com perfeição. Mesmo que receba orientações bem específicas em uma encomenda, sua música sempre vai ser algo dinâmico, que se acomoda e ao mesmo tempo resiste àquilo que você ou os outros esperam ouvir. Eu frequentemente reconheço, ao terminar um processo composicional, que poderia começar imediatamente uma nova peça com os mesmos propósitos, e que essa nova peça viria a ser diferente da primeira. Isto é uma característica essencial de toda arte: seu trabalho não é encontrar a resposta certa para os problemas, mas sim respondê-los através de novas perguntas.

Um outro fator a ser considerado é o da revisão ad aeternum. Minha mãe é artista visual, e sempre achei engraçado vê-la “terminar” um quadro, depois começar a retocar aqui e ajeitar aquilo outro, de repente uma figura está mal feita, mas aí a cor de fundo já não acompanha o resto, etc., etc., e dois dias depois o quadro está completamente refeito, porém ainda sendo “retocado”. Eu tenho esse mesmo vírus: enquanto estiver com uma partitura na minha frente, fico mexendo aqui e ali sem parar. E o mesmo acontece com música gravada, onde vou mixando, remixando, acrescentando algum efeito, e às vezes demoro a perceber que acabei transformando a versão original em outra coisa. Por isso é necessário cuidado no processo de revisão, para que não acabe sendo um processo de destruição. Eu tenho um protocolo pessoal que procuro seguir à risca quando termino uma composição, embora nem sempre tenha tempo hábil para isso. É o seguinte:

(a) Quando termino a primeira versão peça, vejo se está tudo ok e deixo-a descansando por um dia ou dois;
(b) Volto a escutá-la, e de cara encontro revisões necessárias, principalmente de ordem técnica, mas também algumas questões de estética. Faço-as prontamente;
(c) Quando o vírus da revisão eterna começa a despertar, envio o material para pessoas de minha confiança e não mexo mais até ouvir a sua opinião (o que pode levar mais um ou dois dias);
(d) Faço uma nova revisão, mas desta vez tento ser o mais econômico possível;
(e) Envio essa versão para quem vai tocar ou para quem encomendou a música.

Primeiro exemplo: a finalização de “O nefelibata”

Era música para o espetáculo Mistureba, do grupo Necitra (Porto Alegre). Era uma cena de dança e malabares, e o clima desejado era algo etéreo. Compus toda a peça no piano durante uns dois ou três dias. Aí comecei meu protocolo. (a) Dei umas 30 horas de descanso para a peça, e fui fazer coisas da casa e trâmites na rua. (b) Quando retornei e reescutei a música, senti que estava faltando uma profundidade a esse clima etéreo, e o piano solo dava um caráter intimista que me incomodava. Com isso em mente, passei a preencher espaços com alguns sintetizadores, utilizados como pads (base de fundo) ou pequenas interferências sobre o som do piano. Aqui o vírus pegou, e o que era para ser apenas uma aura etérea sobre a peça de piano, acabou virando quase uma peça para piano e música eletrônica. (c) Lá pelas tantas, resolvi parar e enviar o material para o grupo. Eles tinham um ensaio no dia seguinte e experimentaram a música. Todos gostaram, e uma menina que participava do espetáculo disse que tocava trompete e que caberia talvez um solo no meio da música, para juntar a gravação com performance ao vivo no meio do espetáculo. (d) Voltei para casa e compus o solo de trompete, abrindo um novo espaço para isso no meio da música. Para garantir que a gravação serviria mesmo sem o solo de trompete, fiz também uma versão alternativa, em que esse solo foi substituído por uma nova parte de piano. (e) enviei pra eles e, neste caso, não foi mais necessário mexer na música. Eis o resultado:

Segundo exemplo: a finalização de “Epopeia Fantástica”

Compus esta peça durante o doutorado. Foi uma obra pensada especificamente para um grupo de músicos em que já tinha confiança, pois sabia que a tarefa seria difícil e não queria ter um trabalho imenso para compor uma partitura que afinal terminaria na gaveta. Por isso a formação é tão esdrúxula: violino, oboé, trombone, percussão e contrabaixo. É uma instrumentação pensada em instrumentistas, e não tanto em instrumentos. Experimentei diversas técnicas e sonoridades nessa música e, como os instrumentistas eram também amigos, recebi muitas observações sobre escrita e execução musical. Como tivemos vários ensaios para preparar a estreia de “Epopeia Fantástica”, anotava tudo o que podia e voltava para casa, para fazer revisões e, quando necessário, reeditar as partes para entregá-las em sua última versão no ensaio seguinte. Em alguns casos, houve coisas que eu compus e que não soavam bem de nenhuma maneira, portanto não restou outra senão refazer alguns trechos com uma música diferente. Esse processo diferenciado impediu a aplicação do meu protocolo de revisão, mas acho que compensou com seu resultado e também com valiosas coisas que aprendi entre ensaios e revisões. Veja como ficou:

Conclusão

Como se vê, é difícil dizer que uma música está pronta, 100%, já eras, feito o carreto. Tem que desapegar mesmo. Eu nunca estou plenamente satisfeito com minhas composições, e sei que não pararia de revisá-las. Seja qual for o protocolo seguido, é necessário reconhecer que, em algum momento, precisa-se estancar o processo. Nessas horas, vale lembrar que todos os recursos utilizados (equipamentos, pesquisas, estudos, etc.) não serviriam para nada se não houvessem sido articulados por você. A sua cabeça foi a peça fundamental que pôs tudo isso em marcha, e agora é tempo de confiar no resultado de tantos processos levados a cabo, consciente ou inconscientemente.

Por fim, vale lembrar que uma peça terminada não é algo isolado no caminho de um compositor. De certa forma, toda composição criada prolonga suas antecessoras e provoca suas sucessoras. Portanto, desde essa perspectiva, todas as peças feitas são partes de uma grande música inacabada e inacabável. Quando dou algo por finalizado e retorno à folha em branco, de maneira nenhuma me sinto na estaca zero, e trato de carregar comigo, desde os primeiros esboços, experiências que vivi em processos anteriores. Nesse sentido, não estaria mal dizer que a folha em branco é a continuação de tantas folhas passadas.

Espero que você tenha gostado dessa sequencia de posts. Se alguma coisa em especial chamou sua atenção, ou se gostaria de botar algum tópico em discussão, não hesite em escrever para bruno.angelo@pianoclass.com. Até uma próxima,

Bruno Angelo

 

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