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Mão e contra-mão: os (des) caminhos do canto coral brasileiro1

por Vladimir Silva2
Universidade Federal de Campina Grande
silvladimir@gmail.com

O canto coral é uma das atividades musicais mais comuns no Brasil. Muitos fatos contribuíram para a definição desse quadro, dentre eles a viabilidade dos recursos humanos e financeiros requeridos para esse tipo de atividade musical. Em momento algum da nossa história, testemunhamos tamanha expansão no movimento, nem mesmo quando o canto orfeônico atingiu o seu apogeu com o maestro Heitor Villa-Lobos. É-nos suficiente uma consulta à Internet para constatarmos o boom do canto coral brasileiro durante os últimos anos.

Um dos pontos mais importantes e positivos dessa expansão tem sido, incontestavelmente, a geração de novos empregos. O mercado vem sendo sensivelmente modificado e podemos ratificar nossa afirmação quando assistimos, num encontro de coros, a grupos com distintas denominações e finalidades, tais como os escolares, os universitários, os independentes e, até mesmo, aqueles ligados às empresas públicas e privadas, regidos por uma enorme variedade de regentes.

Todavia, se, por um lado, o crescimento da prática coral gerou novas possibilidades de empregos e permitiu o acesso ilimitado de um sem-número de pessoas ao universo da arte e da música, socializando, em certa medida, o que ainda continuava a ser patrimônio de poucos, por outro ele também provocou o surgimento de problemas que têm afetado a nossa área numa perspectiva musical, ética e filosófica.

Inicialmente, devemos considerar que, no atual cenário, a falta de cursos de formação específica para o regente coral é um dos nossos maiores problemas. Apesar do número de corais ser infinitamente superior ao número de orquestras, ainda prevalecem, no Brasil, os cursos de graduação em regência, que focalizam, quase que na sua totalidade, a regência orquestral como área prioritária.

É certo que há um movimento crescente, especialmente no âmbito da pós-graduação lato e stricto sensu, que tem se dedicado a suprir essa enorme lacuna na estrutura educacional brasileira. Contudo, apesar dos esforços envidados, é preciso considerar que pós-graduação é, fundamentalmente, sinônimo de pesquisa, sendo incompatível e estranho o caráter remediativo, por vezes deturpado, que muitos lhe tem atribuído.

As consequências desta carência são mais claramente percebidas em cidades do interior, de médio e grande porte, ou quiçá em algumas capitais, nas quais inexistem escolas de música ou nas quais as instituições oficiais de ensino, sejam elas públicas ou privadas, têm se isentado da responsabilidade de atuar formando profissionais em área tão específica. Em tais localidades, músicos, educadores e cantores — em certos casos até pessoas inseridas em áreas distantes no contexto musical — estão atuando como regentes. Quase sempre desprovidos de uma sólida fundamentação, esses figurantes agem empiricamente, baseados nas experiências que adquiriram por intermédio de uma prévia prática coral, muitas das quais incoerentes e equivocadas. Na verdade, a atuação inconsistente de tais pessoas tem reproduzido um modelo questionável de fazer canto coral que, gradualmente, nos tem afastado do modelo que concebemos como ideal.

Os problemas musicais provocados com essa situação são imensuráveis pois, em sendo carentes de conhecimentos específicos e porque foram privados de um processo formativo sistemático, tais pessoas não possuem as condições técnicas, musicais, vocais ou até mesmo psicológicas, para o exercício da profissão. Além do mais, a ação desse novo tipo de “profissional” revela algo assustador: o espaço que outrora fora reservado a poucos, agora pode ser ocupado por qualquer um. Evidentemente, não pretendemos, nesta ocasião, sacralizar o papel do regente nem tampouco reafirmar o mito romântico de tal artista. Ao contrário, estamos tentando discutir, em termos éticos e morais, por exemplo, a convivência, no âmbito mercadológico, de duas categorias tão distintas de profissionais, isto é, os regentes “por formação” e aqueles “de ocasião”.

Os que estão inseridos nesta última categoria têm ocupado um lugar que não lhes foi, a priori, reservado. E um dos aspectos mais interessantes a observar neste novo ínterim é o fato de que, em sendo portadores, na sua grande maioria, de um profundo carisma e de uma retórica mais que sedutora, esses regentes têm conseguido adentrar às mais respeitosas e distintas instituições da sociedade civil. Certamente, a observação do nosso contexto nos permitirá constatar que muitas empresas nacionais, multinacionais, escolas de música e até mesmo universidades (pasmem!) têm contratado pseudorregentes.

Parece ser lugar comum a falsa concepção de que reger é uma tarefa fácil e acessível a todos, bastando, para tanto, que o regente saiba tocar alguns acordes ao teclado, ter cantado em algum coral, saber marcar alguns compassos e ter um certo espírito de liderança. Consideremos, ainda, nesse contexto o fato de que, apesar de imprescindível, nem sempre a leitura musical é uma habilidade exigida àqueles que postulam a um cargo como regente, já que existem inúmeros que não sabem ler música.

O que podemos deduzir diante disse tudo, então, é que, ao invés de democratização, estamos assistindo à banalização da função, pois como poderíamos explicar o fato de que instituições sérias, gestoras de ciência, arte e educação, a exemplo das universidades e escolas de música, possam estimular tal prática, mantendo em seus quadros pessoas desqualificadas para o exercício de uma profissão tão nobre e importante?

Analogicamente, poderíamos perguntar: quantos médicos estão autorizados a abrirem consultórios antes da conclusão dos seus cursos? Quantos engenheiros podem construir uma simples casa sem antes providenciarem o visto do conselho competente da categoria? Em outros termos: quantos de nós, ao necessitar fazer um tratamento no campo da ortodontia, consultamos um dentista sem formação específica? Quem, se quiser ganhar uma causa na justiça, contrata um advogado que ainda não prestou seus exames junto a OAB?

A resposta é por demais explícita: nós jamais procuraremos esses tipos de profissionais, porque algo a mais está em jogo em tais circunstâncias, isto é, o nosso sucesso, a nossa cura, a nossa vida. Mas, em se tratando de música, e, mais particularmente, de canto coral, parece que a prática pode ser diferente. Afinal de contas, nunca se teve notícia que alguém morreu por ter sido regido por um regente incompetente ou sem formação específica.

Diante desse quadro, nos caberia, então, um questionamento maior, qual seja: por que nos calamos diante dessa situação? O que nos faz aceitar, de forma tão passiva, o fato de que qualquer pessoa assuma a missão de conduzir um coro, quando nós sabemos que a cada dia a regência tem se consolidado enquanto arte, logo técnica, saber, repleta de elementos idiossincráticos? Por que convivemos tão tranquilamente com uma prática coral que, travestida de uma democratização questionável e duvidosa, não ultrapassa o limite do banal e do trivial? Por que cremos que esse tipo de atitude pode contribuir para o estabelecimento de um movimento coral realmente organizado e eficiente no Brasil?

Em verdade, é preciso ir além dessa realidade sem horizontes com a qual gradualmente estamos nos acostumando a conviver. É necessário rever esse pacto que tem sido estabelecido no grande cenário coral nacional e que é reforçado e sedimentado frequentemente, seja através dos elogios fortuitos e das críticas carregadas de eufemismo que expressamos a cada apresentação, encontro ou festival de coros realizado Brasil afora, seja através da nossa simples omissão diante de tudo isso. É preciso uma postura crítica para compreender o discurso protecionista que tem sido articulado entre o tal regente de ocasião, o coro e o seu superior imediato, comumente alguém artisticamente bem intencionado, mas quase sempre completamente ignorante em termos de música e canto coral.

É certo que, para muitas instituições, esses são os profissionais ideais, principalmente porque evitam o conflito, o trabalho árduo, o incômodo. O que eles querem?! Muito fácil: primeiro, um salário, variável entre o razoável e o excelente; segundo, uma sala para ensaios, cuja qualidade é indiferente; terceiro, um piano, ainda que um teclado eletrônico com ritmos e harmonias programadas seja melhor; quarto, uma máquina moderna para fazer milhares de fotocópias, visto que comprar livros e música editada está fora dos planos; quinto, a verba anual para, no mínimo, duas viagens, preferencialmente para festivais e encontros em cidades turísticas; e, por último, preparar o calendário com inúmeras apresentações, geralmente divulgando um repertório que agrade às multidões (costumeiramente de amigos) e que amacie (ou será melhor alivie?) a consciência e o ego de todos.

Aliás, é mister acrescentar que, usualmente, essa subcategoria de profissionais, para não revelar o seu despreparo técnico e para não assumir o mea culpa, atribui a opção por um repertório menos trabalhoso, menos erudito e mais popular à incapacidade do coro, que é ruim e formado por cantores de vozes fracas, que não leem música, que não têm tempo suficiente para aprender a solfejar ou fazer uma música mais difícil. A opção por esse tipo de literatura, geralmente de efeito, de zoada, em detrimento de uma literatura mais ampla e elaborada, injustamente acusada de enfadonha, difícil e elitista, revela, indubitavelmente, dois aspectos críticos da nossa realidade: a perigosa propensão em agir maquiavelicamente por intermédio de ações populistas e a carência de projetos educativos e musicais mais amplos em nossa nação.

Antes que sejamos rotulados de etnocêntricos, ressaltamos que não defendemos a música erudita (leia-se a música acadêmica ocidental europeia) como a grande música a ser cultivada e reverenciada. Entendemos popular e erudito como formas diferentes de perceber e representar o mundo e que, enquanto produtos da cultura, com finalidades e contextos específicos, não podemos concebê-los valorativamente. O que nos incomoda, e o que combatemos em termos reais, não é, portanto, se os coros interpretarem um repertório mais ou menos popular, mais ou menos erudito. Ora, o fato de a música popular ocupar um lugar predominante em nossa história é por demais explícito e inegável, o que já justificaria, per se, a inclusão desse tipo de música no repertório coral. Todavia, o que nos afeta enormemente é a postura de muitos regentes made in Paraguay que tem optado por um repertório mais popular, tendo por base o argumento de que ele é mais fácil e acessível do que um repertório erudito, tratando-o, por conseguinte, de forma menos cuidadosa e criteriosa, ad libitum. Na realidade, tal atitude só revela e reforça os valores positivistas e discriminatórios da nossa sociedade politicamente subdesenvolvida, que trata popular e erudito, diferentes formas de representação do saber/fazer musical, como categorias hierarquicamente subordinadas.

Infelizmente, esse é o resultado esperado num país em que a educação é tratada de qualquer forma e sem prioridade. Grande parte dos nossos “colegas de trabalho” raramente visita bibliotecas e bancos de partituras para a pesquisa de repertório. Ao contrário, muitos deles fazem a seleção em três vias principais. No primeiro caso, a escolha é feita com base no repertório já conhecido, provavelmente obras da época em que o regente cantou em algum grupo; aqui estão incluídas as músicas mais difíceis, as eruditas, por assim dizer. No segundo caso, o repertório é escolhido a partir do contato que o regente tem com outros grupos nos encontros e festivais de corais; aqui estão incluídos os modismos da música coral, especialmente as obras e arranjos de grande empatia popular. No terceiro e último caso, o regente seleciona o repertório após consultar o coro. Geralmente, o grupo manifesta sua predileção por um repertório mais popular e que necessita ser submetido a um arranjo. É nesse instante que os batedores de compasso realizam os mais profundos desejos composicionais, ainda que para tanto os limites do bizarro sejam ultrapassados, visto que, frequentemente, muitos rotulam e consideram os seus exercícios de encadeamento harmônico como arranjos com qualidades artísticas e composicionais.

É ridículo, mas o que se tem produzido nessa área está, muitas vezes, além do limite do aceitável. Há uma inflação de pa-da-ba-das, txu-ru-ru-rus, fu-ti-cu-tas e pa-ti-cum-buns que saturam o nosso ouvido e a nossa paciência. E, muitas vezes, esse tipo de repertório, além de cantado à exaustão, é ainda reciclado, pois existem muitos que rearranjam os arranjos de outros, dando-lhes uma nova versão. O mais drástico de tudo isso é ouvir tais arranjos gravados em compact disc. Em acréscimo, há ainda o fato de que a proliferação desse tipo de repertório, insignificante e modista, amplamente disseminado e aprovado pela grande massa coral em detrimento de uma literatura mais ampla, diversificada e rica em desafios, tem provocado e, ao mesmo tempo, justificado a inexistência de um mercado editorial dirigido, na nossa sociedade, para a música coral.

Para que publicar obras restauradas, antologias e coleções se vivemos a cultura da fotocópia e se o repertório coral está restrito a um certo tipo de literatura que não exige editoração? Para que exigir direitos autorais se essa reprodução ilegal é oficialmente legalizada em nosso país? Como podemos pensar em redirecionar os caminhos da nossa prática se a própria universidade, templo sagrado de produção do saber científico, é a primeira a isentar-se da responsabilidade de comprar e editar música, preferindo, ao contrário e sob o pretexto de que não há recursos suficientes, disponibilizar máquinas fotocopiadoras nos corredores das suas salas de aula para que o lixo seja proliferado?

É essencialmente por isso que a publicação de música ainda é rara e dispendiosa no Brasil. Poucas editoras e regentes se dedicam à pesquisa e à editoração de repertório coral, seja ele erudito ou popular. Certamente esse tipo de serviço não poria fim à proliferação dos arranjos medíocres, entretanto ampliaria os horizontes da nossa seleção, à medida em que critérios técnicos passariam, pelo menos hipoteticamente, a ser estabelecidos para publicação de música coral. Neste sentido, a contribuição que o desenvolvimento de um mercado editorial sério e organizado poderá trazer ao movimento coral brasileiro é bastante significativa, sobretudo no que diz respeito à inclusão de um repertório mais geral e globalizado em nossas atuações e, em particular, no que concerne à geração de novas fontes de renda para o compositores, musicólogos e regentes.

À guisa de comparação, o que podemos constatar é que, à semelhança do macrossocial, prevalece, no microuniverso da prática coral, a filosofia do imediatismo. Inexistem os projetos de construção de um saber musical a médio e longo prazo e predominam, ao contrário, os de curto, muitos dos quais infrutíferos e provocadores de um gozo estético volátil e inócuo. Preferimos ensinar através da memorização a ensinar por solfejo. Preferimos o aparentemente mais fácil ao aparentemente mais difícil. Preferimos, constantemente, os fins aos meios, notadamente quando voltamos a prática coral exclusivamente às múltiplas apresentações solicitadas pelo e para a reverência dos mecenas ou em função dos festivais e encontros de corais que ocorrem em distintas regiões do Brasil.

Para atingirmos o que almejamos, é preciso, então, considerar que, sob o ponto de vista educacional e musical, é o processo, na sua totalidade e na sua pluralidade, que determinará a qualidade do produto. Por essa razão, faz-se necessário rever a prática coral vigente e atacar diretamente as bases desse jogo articulado entre cumplicidade e ignorância. Parece engraçado, contudo é verdade que muitos dos regentes que estão em atuação precisam passar por um criterioso processo de reeducação musical antes de retornarem ao mercado de trabalho. E, para tanto, o desenvolvimento de programas específicos que visem a formação de tais profissionais é urgente. Sem sombra de dúvidas, a academia não é (e nunca será!) nem o alfa nem o ômega desse processo. Aliás, talvez ela não seja o lugar mais adequado para a formação do artista e do intérprete, contudo ela tem uma larga parcela de responsabilidade neste processo de socialização e sistematização do conhecimento, fato que permitirá uma mudança considerável no cenário musical. Sem fundamentação teórica e sem pesquisa, estaremos reforçando apenas um lado da espiral do conhecimento, ou seja, os aspectos intuitivos e experimentais.

Certamente, o surgimento de regentes habilitados proporcionará a inclusão do nacional e do universal, do erudito e do popular em patamares qualitativamente equiparados, assim como o desenvolvimento de ações em torno de uma cidadania musical que inclui, grosso modo, a compreensão, por parte dos nossos cantores, do discurso sonoro em sua totalidade. Assim, o domínio dos códigos estruturantes em música seria, por conseguinte, uma das etapas do nosso amplo projeto educacional e artístico. É inquestionável que a musicalidade que trazemos e vivenciamos deve ser considerada como o ponto de partida em direção à trajetória almejada, afinal o ideal filosófico da prática coral é, em essência, a música e toda a experiência cultural que ela comporta. Ao atingirmos esse alvo, finalmente, a prática vigente em nosso meio tornar-se-á insólita e destituída de sentido. Nossos regentes e cantores sairão desse comportamento eminentemente bancário e passivo, usando a máxima Freiriana, e caminharão em direção a uma ação ativa e inteligente, baseada na construção de conhecimentos musicais significativos. E nesse contexto não há espaço para a cumplicidade: o círculo estará rompido.

1 Este texto foi originalmente escrito em 2001, durante o programa de doutoramento do autor, em Regência Coral, na Louisiana State University, nos Estados Unidos da América.

2 Vladimir Silva, tenor e regente, é doutor em Música (Regência) pela Louisiana State University (EUA). Já regeu vários grupos vocais/instrumentais, atuando como regente e solista na Argentina, França, Itália, Áustria, Alemanha e Estados Unidos. Tem colaborado com universidades e participado de festivais e eventos artísticos e culturais no Brasil, na Europa e na América do Norte. Como professor convidado, lecionou nos Festivais de Música de Goiânia-GO (2007, 2016), Londrina-PR (2009 e 2010) e nos Paineis FUNARTE de Regência Coral (2008 a 2015). Seus artigos estão publicados nas revistas Educação e Compromisso, Choral Journal, Per Musi, Musica Hodie, ICTUS e Opus. Em maio deste ano, estreou a Missa de Alcaçus, de Danilo Guanais, no Carnegie Hall, e em julho apresentou conferência sobre a obra do compositor Reginaldo Carvalho no 11th World Symposium on Choral Music, em Barcelona. Atualmente, é professor da UFCG e Diretor Artístico do Festival Internacional de Música de Campina Grande.